sábado, 17 de dezembro de 2016

A Revolução Científica libertou a Ciência da Religião?




A religião e a ciência são duas asas com as quais a inteligência do homem pode subir às alturas, com as quais a alma humana pode progredir. Não é possível voar apenas com uma asa! Se um homem tentar voar apenas com a asa da religião cairá rapidamente no atoleiro da superstição, enquanto se tentar apenas com a asa da ciência não conseguirá qualquer progresso, mas cairá no lamaçal desesperante do materialismo. (‘Abdu’l-Bahá, excerto de uma palestra na Rue Camoens, Paris, 12-Novembro-1911)

A Revolução Científica libertou a ciência da religião. A nova ciência libertou o espírito da matéria. A razão e a experiência substituíram a revelação como fonte de conhecimento no mundo. Após a Revolução Científica tornou-se inevitável que Deus acabasse por ser totalmente afastado da natureza e que a ciência negasse a existência de Deus. (Margaret J. Osler, Professora de História e Professora Adjunta de Filosofia na Universidade de Calgary e autora do livro Reconfiguring the World: Nature, God,and Human Understanding in Early Modern Europe)

No seu ensaio no livro Galileo goes to Jail, a professora Osler prossegue o raciocínio anterior com estas palavras:

“Estas afirmações não fundamentadas fizeram o seu percurso na história popular da ciência e são frequentemente repetidas”. Osler apresenta uma lista de pessoas das facções religiosa e secular do debate que “repetem este mantra reforçando a crença de que o séc. XVII testemunhou o divórcio entre ciência e religião”.

Acho interessante que ela use a ideia de divórcio – como se a ciência e a religião fossem um casal numa crise de meia-idade que trocam a sua vida a dois por fantasias de juventude e carros desportivos. Olhando para o álbum dos anos em que ciência e religião estiveram juntas, é claro que a palavra não foi escolhida por acaso.

Até ao século XIX, a ciência ainda não era ciência; era “filosofia natural” ou “história natural”. Nem existiam cientistas, conhecidos como tal. Os homens e mulheres que se dedicavam à ciência eram, muito frequentemente, pessoas de fé, e muitas vezes, membros do clero. Como referi anteriormente, a filosofia natural era parte integrante dos currículos de todas as universidades medievais, e tinha poucas referências à doutrina da Igreja. A teologia era ensinada como uma área de estudos distinta, numa faculdade especializada.

A filosofia natural focava-se em temas como a origem do universo ou a Primeira Causa, as leis que regiam a criação e a sua concepção, a natureza da alma e do corpo humano. Nesses tempos, a ciência incipiente estava próximo do significado do seu nome scientia – isto é, o conhecimento real da essência das coisas. Aos olhos de alguns, isto impediu a “filosofia natural” de se tornar uma verdadeira ciência (scientia) porque as observações dos seres humanos eram imperfeitas, e consequentemente incapazes do nível de rigor necessário para conhecer a essência de qualquer coisa.

Johannes Kepler
Quando li sobre a história da filosofia mecânica, que tenta explicar todos os fenómenos naturais em termos mecanicistas, assumi que os seus promotores pretendiam eliminar Deus do processo. Mas fiquei surpreendida ao descobrir que eles eram profundamente religiosos. Entre eles incluíam-se luminárias como Gassendi, Descartes e Boyle. Até mesmo Johannes Kepler, com a sua certeza que Deus tinha criado um universo que exibia ordem e harmonia mecânica, podia ser contado entre os proponentes da filosofia mecânica.

A analogia que me vem à ideia quando penso na alegada dicotomia entre filosofia mecânica e filosofia espiritual é a escrita. Quando penso no que é necessário para escrever um romance desde o primeiro brilho nos olhos até ao último parágrafo, vejo dois grandes processos em funcionamento: místico e mecânico. O místico inclui a geração da ideia para a história – o nascimento e génese das personagens, os momentos de inspiração e voo da imaginação, a paixão que liga eventos, personagens e linhas do enredo e traduzi-lo por palavras. Por outro lado, a actividade mecânica de passar estas palavras e ideias para uma forma física – escrever, tal como escrevi este texto – exige que que elas sejam elaboradas de forma a serem experimentadas por outras pessoas.

Estes dois processos dependem mutuamente um do outro. As ideias ficam no campo dos sonhos se não as colocamos no papel; se isso acontecer, nunca se tornarão uma história. Por outro lado, sem essas ideias, essas interligações, essas personagens, o meu amor por elas e a minha paixão pela história, não haverá nada para o processo mecânico registar, e também não haverá história. Parafraseando a professora Osler: até numa criação mecânica há espaço (ou necessidade) de um propósito e de um desenho.

O romance existe porque eu pego no produto do meu processo intelectual/espiritual e aplico-lhe o processo mecânico. As palavras que escrevo revelam o intelecto por trás de si. Também são evidências do processo espiritual.

Não me surpreende descobrir que vários filósofos naturais expressaram a opinião de que, tal como disse Osler, "a filosofia natural, devidamente seguida, leva ao conhecimento do Criador". Entre os que sustentavam essa visão estava Lord Kelvin (físico matemático e engenheiro) que aconselhou:

Não tenham medo de ser livre pensadores. Se pensarem com força suficiente, serão forçados pela ciência a acreditar em Deus, que é a base de toda Religião. Descobrirão que a ciência não é antagónica, mas útil à religião. (William Thomson, 1º Barão Kelvin)

Opiniões semelhantes têm surgido de vozes religiosas – especialmente de Bahá'u'lláh, que escreveu "O princípio de todas as coisas é o conhecimento de Deus", e do Seu filho 'Abdu'l-Bahá, que escreveu: "A ciência é o esplendor do Sol da Realidade, o poder de investigar e descobrir as verdades do universo, o meio pelo qual o homem encontra um caminho para Deus".

Isaac Newton escreveu no Principia que:

... todo o discurso sobre Deus é derivado de uma certa semelhança das coisas humanas, que, embora não sendo perfeita, é, no entanto, um certo tipo de semelhança... E abordar o Deus dos fenómenos é certamente parte da filosofia natural.

Por outras palavras, por muito imperfeita que seja a nossa capacidade de compreensão, a criação pode dizer-nos alguma coisa sobre as qualidades do Criador, tal como a minha escrita diz ao leitor algo sobre mim.

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Texto original: Did the ScientificRevolution Liberate Science from Religion? (www.bahaiteachings.org)

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Maya Bohnhoff é Baha'i e autora de sucesso do New York Times nas áreas de ficção científica, fantasia e história alternativa. É também compositora/cantora (juntamente com seu marido Jeff). É um dos membros fundadores do Book View Café, onde escreve um blog bi-mensal, e ela tem um blog semanal na www.commongroundgroup.net.

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