sábado, 27 de agosto de 2016

A Ascensão do Cristianismo e a Ruína da Ciência

Por Maya Bohnhoff.


Um dos mitos mais comuns sobre ciência e religião é que o crescimento da fé - ou da ortodoxia - provocou a ruína das ciências nascentes.

Um modelo usado para sustentar esta ideia é o confronto clássico entre Galileu e a Igreja Católica. Outro é o martírio da matemática egípcia, Hipátia, no século V. Segundo a lenda, Hipátia foi arrastada da sua carruagem e morta numa igreja de Alexandria, por uma multidão de cristãos fanáticos. Havia um panfleto escrito sobre ela em 1720 por um tal John Toland com este título impressionante (respire fundo antes de ler): A História de uma Mulher Belíssima; que foi despedaçada pelo clero de Alexandria para satisfazer o orgulho, a rivalidade, e a crueldade do Arcebispo, comummente, mas imerecidamente, intitulado São Cirilo.

Esta história foi apresentada durante séculos como um exemplo do que acontece quando a ciência iluminada entra em conflito com qualquer forma de crença religiosa. Mas será uma história fidedigna? Segundo uma biografia recente de Hipátia, escrita por Maria Dzielska, a resposta é não. Dzielska revela que Hipátia estava envolvida numa luta política local com o referido Cirilo de duvidosa santidade - que Dzielska descreve como "um clérigo ambicioso e implacável, desejando alargar a sua autoridade" - e Orestes, o Perfeito Imperial Romano da região, e também um amigo Hipátia.

O martírio de Hipátia, em Alexandria
Orestes, tal como Cirilo, era cristão. Mas Cirilo não gostava de Orestes porque o Prefeito desafiou a sua própria autoridade e ambições. Cirilo invocou a amizade de Orestes com a pagã Hipácia para denegrir a sua reputação. Para apimentar a história, Cirilo acusou a mulher de feitiçaria.

Orestes era o verdadeiro alvo de Cirilo, e não Hipátia. Era um alvo por razões políticas, e não religiosas ou científicas. Cirilo nunca perseguiu os filósofos naturais como classe, embora tenha atacado violentamente os pagãos. Apesar das suas acções, as ciências e a matemática floresceram em Alexandria nas décadas seguintes. Os registos históricos não confirmam a alegação de que a ascensão do Cristianismo como religião foi o toque de finados do desenvolvimento científico.

O falecido historiador da ciência David C. Lindberg apresentou a ideia de que os relatos enganadores encontrados em obras como The Closing of the Western Mind de Charles Freeman são "tentativas de manter vivo um mito antigo: a imagem do cristianismo primitivo como um refúgio de anti- intelectualismo, uma fonte de sentimento anticientífico", e a causa do que se tornou conhecido como Idade das Trevas na Europa.

Então, de onde vem o mito?

Lindberg olha para as declarações de Tertuliano e outros filósofos religiosos que eram expressão de um certo desdém para com "Atenas" (sinónimo de erudição pagã). Taciano, um estudioso da Mesopotâmia do século II e contemporâneo de Tertuliano, perguntou:
Que coisas nobres produziste na tua busca pela filosofia? Qual dos teus homens mais eminentes se libertaram da vanglória?... Portanto, não te deixes levar pelas assembleias solenes de filósofos que não são filósofos, que dogmatizam as fantasias rudes do momento. (Galileo Goes to Jail, p. 11)
Aqui, Taciano foca-se nos "frutos" da filosofia, naquilo que ela realmente produz. Bahá'u'lláh expressou um sentimento semelhante:
Conhecimento é semelhante a asas para o ser (do homem) e como uma escada para subir. Compete a todos adquirir conhecimento, mas daquelas ciências que podem beneficiar o povo da terra, e não aquelas ciências que são meras palavras e terminam em meras palavras. (Baha’i World Faith, p. 189)
Mas, em seguida, acrescenta o seguinte:
Os possuidores de ciências e artes têm uma grande prerrogativa entre os povos do mundo. Na verdade, o verdadeiro tesouro do homem é o seu conhecimento. O conhecimento é o instrumento da honra, prosperidade, alegria, alegria, felicidade e exaltação. (Idem).
O contexto é fundamental. Tertuliano e Taciano não denegriram o conhecimento, mas antes o dogmatismo construído sobre "fantasias rudes" e tendências intelectuais. A sua atitude para com o dogmatismo filosófico deve ser considerada no contexto do facto de que eles e os seus colegas utilizarem os métodos da filosofia grega nas suas próprias áreas de estudo e pensamento. Eles alinharam as suas ideias com aqueles parceiros agradáveis como as escolas filosóficas do platonismo ou neoplatonismo, estoicismo, aristotelismo e neopitagorismo.

Lindberg coloca uma questão fascinante e simultaneamente crítica: "O que é que essas tradições religiosas e filosóficas têm a ver com a ciência?"

Naquele momento da história, a "ciência" não existia como uma disciplina, e seu progenitor - a chamada filosofia natural - não se distinguia da religião ou filosofia em geral. Havia, é claro, crenças sobre a natureza, medicina, bem-estar, doença, fenómenos naturais e a vida em geral. Essas coisas eram estudadas e escrevia-se sobre elas, muitas vezes com ênfase na sua relação com Deus ou deuses. A ideia de que pessoas religiosas desse tempo fossem foram patetas que não pensavam em nada senão as páginas da Bíblia (se é que possuíam esse documento), é uma caricatura, na melhor das hipóteses. O estudo do mundo natural foi um ramo do saber para pensadores cristãos e pensadores não-cristãos. Passariam séculos antes que essas áreas do saber fossem assinaladas com rótulos onde se lia "Ciência" e "Religião".

Na verdade, o que os filósofos cristãos discutiam era o propósito do conhecimento e a atitude apropriada para com o que se poderia retirar da realidade física. No decurso deste debate, eles revelaram uma profunda compreensão e domínio das metodologias utilizadas também nas filosofias a que se opunham. De facto, eles não se opunham à filosofia natural, mas a certos princípios filosóficos que concluíram - racionalmente - serem irrelevantes, infrutíferos, ou mesmo enganadores. Considerando a ênfase de Cristo na vida frutífera do cristão, isto não é surpreendente.

Longe de denegrir o conhecimento, os primeiros pensadores cristãos promoveram os benefícios de uma congregação bem informada. Foi neste contexto que Agostinho lamentou a ignorância de alguns dos seus companheiros cristãos:
Mesmo um não-cristão sabe alguma coisa sobre a terra, os céus, e os outros elementos... sobre o movimento e órbita das estrelas... e assim por diante, e é esse conhecimento ele defende, como sendo correcto segundo a razão e a experiência. Agora é uma coisa vergonhosa e perigosa para um infiel [um não-cristão] ouvir um cristão... a dizer disparates sobre esses assuntos; e devemos tomar todas as medidas para evitar uma situação tão embaraçosa, em que as pessoas vêem uma vasta ignorância num Cristão e riem-se em desprezo.
Agostinho e os seus companheiros aplicaram metodologias filosóficas greco-romanas aos fenómenos naturais e à interpretação bíblica. Não surpreende, portanto, que algumas das maiores conquistas e descobertas científicas que sustentam a ciência ocidental tenham sido feitas por estudiosos da religião, ou que o principal agente a incentivar esta descoberta e conquista tenha sido a igreja Cristã.

Além das multidões de fanáticos de ambos os "lados" (cristãos e não-cristãos citaram Tertuliano para defender os seus pontos de vista) a diferença entre as ideologias "científica" e "religiosa" estava em grande parte na atitude. Os filósofos naturais Cristãos defendiam o conhecimento aplicado - um conhecimento que não era um fim em si mesmo, mas sim uma ferramenta para ser usada na compreensão do propósito da existência humana.

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Texto original: The Rise of Christianity and the Demise of Science (www.bahaiteachings.org)

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Maya Bohnhoff é Baha'i e autora de sucesso do New York Times nas áreas de ficção científica, fantasia e história alternativa. É também compositora/cantora (juntamente com seu marido Jeff). É um dos membros fundadores do Book View Café, onde escreve um blog bi-mensal, e ela tem um blog semanal na www.commongroundgroup.net.

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